terça-feira, outubro 15, 2013

Um clássico da ficção científica brasileira

Rubens Teixeira Scavone (1925-2007) foi o mais erudito dos autores brasileiros de ficção científica e um dos pioneiros do gênero no país. Ele foi autor do romance O homem que viu o disco voador (1958), possivelmente o mais bem sucedido livro da fc brasileira, e da antologia O diálogo dos mundos (1963), entre outros trabalhos. Scavone recebeu o prestigioso Prêmio Jabuti em 1973 pelo romance mainstream Clube de campo e presidiu a Academia Paulista de Letras por vários mandatos.
Apaixonado pela literatura inglesa, Scavone  foi buscar inspiração no clássico Contos de Cantebury, de Geoffrey Chaucer, escrito há mais de 600 anos, para produzir o seu melhor livro: O 31º peregrino, publicado pela primeira vez em 1993 pela editora Estação Liberdade, com ilustrações de Giselda Leirner.
Trata-se de uma história significativa em termos humanos e emocionais. Tocante e de estilo incomum que, através de um instrumental exclusivamente léxico, transporta o leitor para seis séculos no passado com uma eficiência rara. Ainda mais porque não segue os parâmetros protocolares da fc convencional. As descrições são ligeiras e não há muitas explicações para situar o leitor. Toda a ambientação emana do estilo rebuscado, que lança mão de uma infinidade de palavras desusadas. Esse estilo, com um quê de barroco, pode parecer estranho ao leitor moderno, mas se deve a escolha do autor que se faz passar pelo próprio Chaucer.
Contos de Cantebury relata as histórias de trinta peregrinos (entre eles, o próprio Chaucer) a caminho da Catedral de Cantebury, ao sul de Londres, onde o santificado Arcebispo Becket foi imolado pelos cavaleiros de Henrique II. Cada um dos romeiros assume um arquétipo social e por ele é batizado. Por isso os personagens não têm nomes, mas classificações: o Pároco, o Padre da Freira, o Frade Mendicante, o Monge, a Prioresa, a Mulher de Bath, o Tecelão, o Tapeceiro e o Tintureiro (que formam uma trindade importante na narrativa de Scavone), o Mercador, o Vendedor de Indulgências, o Estudante de Oxford, o Cozinheiro, o Carpinteiro, o Magistrado, o Cavaleiro, o Escudeiro, o Moleiro, o Cônego e seu Criado, o Médico, o Provedor, o Lavrador, a Freira, o Homem do Mar, o Feitor, o Proprietário Rural, o Beleguim e o Estalajadeiro.
Scavone aproveita a narrativa para fazer considerações muito interessantes sobre o Roteiro dos Peregrinos (há um mapa do mesmo na quarta capa do livro, desenhado por James Scavone) que guarda ligações com a mitologia de São Tiago e, por sua vez, remete aos primórdios de outro caminho de peregrinação, Santiago de Compostela, com uma surpreendente explicação da origem desse termo que justifica perfeitamente a releitura fantástica que Scavone dá a obra de Chaucer.
Chaucer/Scavone conta a história de um até então não citado trigésimo primeiro peregrino, que se une aos romeiros a meio caminho. Trata-se da Mulher Grávida, cujo estado parece ter relação com o sobrenatural e alarma os peregrinos católicos que, naturalmente, são muito supersticiosos.
A história relatada pela Mulher Grávida é, em si, uma jóia do horror gótico medieval, que reporta aos clássicos do sobrenatural que formam o caldeirão no qual foram cozidos todos os gêneros fantásticos modernos.
Entretanto, O 31º peregrino é uma novela de fc. É claro que, para ser classificada assim, há que se encontrar nela algum componente explícito do gênero, e ele surge à altura devida, quando a Mulher Grávida abandona o grupo durante a noite e vai encontrar seu destino, que é testemunhado pelo narrador Chaucer/Scavone. Mas isso é menos importante que os conflitos humanos que emanam das relações entre os arquétipos definidos por Chaucer e das elucubrações filosóficas, históricas e sociológicas do autor/personagem.
O livro ainda guarda muitas outras qualidades. É uma novela que mergulha no cristianismo e dele faz um discurso ambivalente. Se o afirma ou o rejeita, fica ao leitor a responsabilidade por decidir.
O 31º peregrino está entre os melhores textos da fc brasileira, ao lado de "A escuridão", de André Carneiro, e A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, e, como tais, é leitura obrigatória para aqueles que apreciam a literatura fantástica brasileira e querem experimentar seus limites.

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